quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

O sofrer passa

“O sofrer passa.
Não passa o ter sofrido.”


Se me não falha a memória, a frase pertence ao grande escritor francês F. Mauriac. Seja de quem for, ela só pode ter brotado da experiência de um coração ferido.
Tudo passa na vida, passam as feridas, mas permanecem as cicatrizes.
Há cicatrizes horrendas de feridas não assumidas, a clamar vingança, a escorrer amargura.
Há, pelo contrário, cicatrizes cheias de doçura, de vidas gastas no amor e no serviço.
Ainda o conheci, embora já no declínio. Experimentou a perseguição e o exílio mas, ao mesmo tempo, nunca perdeu o optimismo nem o desejo de construir. Dele se dizia, nos últimos anos em que ia progressivamente perdendo faculdades: “Que ruína!” Houve, no entanto, quem acrescentasse: “Sim, mas que bela ruína!”
Li algures que um velho amargo é a obra-prima do diabo. Bem observado; por onde passa deixa um sulco de tristeza e azedume. Podíamos, no entanto, contrapor que um velho sereno, pacificado é um bálsamo para as nossas feridas mais teimosas.
Quando Jesus, depois de crucificado e morto, se manifestou cheio de vida aos seus amigos, quis que vissem as cicatrizes dos cravos e da lança. Cicatrizes gloriosas a proclamar a vitória da vida sobre a morte. Mais do que em qualquer outro caso, o sofrer passou mas ficou o ter sofrido.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Deus não é mudo

Deus falou-nos de muitas maneiras nos tempos antigos, pelos profetas. Neste nossos tempos que são os definitivos falou-nos pelo Filho”.

Assim começa a Carta aos Hebreus, ou seja aos cristãos oriundos do judaísmo. E falou porquê? – Porque nos ama. E para quê? – Para nos dizer quem é e o que espera de nós. Sendo o Filho a Palavra que exprime a totalidade do ser do Pai, depois dele já não há mais nada a dizer.
É o cúmulo do desejo impossível de quem ama: dizer-se completamente. Numa vida de amor todas as palavras, todos os gestos, todos os silêncios, são tentativas sempre renovadas e nunca inteiramente conseguidas, de se dizer. São tudo maneiras de exprimir a vontade de se dar.
Deus deu-Se-nos totalmente no Filho dizendo simultaneamente quem é – PAI. Consequentemente todos nós, se aceitarmos o dom que nos oferece no Filho, podemos também ser filhos com o direito de lhe chamar Pai e o dever de nos comportarmos como filhos.Esta é a nossa vocação: seja qual for a actividade que tenhamos que desenvolver ao longo da vida, é como filhos de Deus que a devemos exercer.

Árvores

Para muitos o Outono é uma estação triste. Para mim não. É verdade que a beleza das vinhas, no Douro, e das árvores sugere a agonia antes da morte do Inverno. Afinal trata-se apenas de uma pausa para recuperar novas forças e ressurgir na exuberância da Primavera.

Mesmo no Inverno a natureza não morre; entra no silêncio que é, como na música, o que dá sentido à frase. Como dizia Jesus quando lhe anunciaram a morte do amigo: “Lázaro está a dormir mas eu vou acordá-lo.” Pode dizer-se que é o mistério pascal vivido simbolicamente pela natureza. Como cantava um antiquíssimo poeta para celebrar a Páscoa “A morte e a Vida travaram uma espantosa batalha mas é o contendor derrotado que sai vencedor”.

Um certo cientismo de recém-chegados pretende negar todo o valor a este tipo de linguagem como se apenas fosse válida a expressão científica, objectiva e rigorosa. Contudo os “mitos” das grandes culturas continuam a ser os únicos guias que nos podem ajudar a penetrar no “mistério”. Mistério não é o buraco negro da ausência de conhecimento. É antes o que não cabe na nossa pequena capacidade de conhecer objectivamente.
Também os mitos integrados nas narrativas bíblicas são os que melhor servem para interpretar o sentido da vida, do mal e da morte, da felicidade e do que está para além da morte. Lá estão, no centro do Éden, a árvore da vida e a do conhecimento do bem e do mal. A vida é um dom que nos cabe aceitar e fazer crescer; a felicidade não pode encontrar-se no uso arbitrário da nossa liberdade. Só se pode descobrir na prática de uma fidelidade criativa à nossa realidade de imagens de Deus.