quarta-feira, 24 de junho de 2009

O silêncio de Deus

Quando os amigos desaparecem e a tristeza me invade, quando a nada me posso agarrar e falta o pé, quando nem Deus corre a socorrer-me, é então que a fé se transforma em grito de angústia: “Meu Deus, porque me abandonaste?” Onde estavas quando chamei por ti?
O evangelista Marcos, como é hábito, coloca a situação num caso concreto. Jesus sobe para um barco com os seus amigos e aproveita a travessia do lago para descansar. Surge então furiosa tempestade que ameaça fazer soçobrar a barca e quem nela navega. Entretanto Jesus dorme tranquilamente, à popa. Não vês que nos perdemos? perguntam aflitos os discípulos. Em lugar de responder, Jesus censura: “Ainda não tendes fé?”
Habituados a estar do lado da salvação, quando os perdidos eram os outros, ainda não sabiam que lhes cabia agora ir ao encontro de quem precisasse de ajuda. Não sabiam, ainda não tinham uma fé adulta.
E eu? Quando poderei afirmar com verdade: “Ainda que os amigos me abandonem, ainda que as ondas do mal se levantem contra mim, nada temerei porque tu estás comigo”. Podes estar a dormir, aparentemente surdo e mudo, impotente. Ainda assim, sei que estás comigo, nada temerei.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Medos

Sempre admirei aquelas pessoas que não têm medo. Pode ser por inconsciência, por insensibilidade ou simplesmente por bravata. Não são essas que eu admiro. Pois há coisas de que sensatamente devemos ter medo: enfrentar animais ferozes sem proveito para ninguém; pôr em risco a própria vida e a dos outros pelo simples prazer de experimentar a orgia da velocidade, isso é temeridade e não me causa qualquer sentimento de admiração.
Mas enfrentar serenamente perigos tremendos por fidelidade ao amor de Deus ou do semelhante, isso é verdadeira e admirável valentia.
Vem isto a propósito do santo que hoje se comemora, o homem para todos os tempos, Thomas More. Humanista, com o que isto significa de cultura universal, encantador chefe de família, íntimo do rei, Chanceler de Inglaterra senhor de todo o poder, abaixo do soberano… só lhe era pedido que assinasse a declaração de nulidade do casamento real. Tão pouca coisa uma assinatura, quase todos os conselheiros o fizeram, poderia tão facilmente encontrar uma justificação…
Mas a consciência, esse cristalino, embora secreto, juíz de todas as decisões, não podia ser ignorado. Impossível fazer a vontade ao rei.
Na belíssima carta que escreveu, da prisão onde aguardava a execução, à filha predilecta, Margarida, podemos encontrar o fundamento de tão serena fortaleza em face da morte:
“Está tranquila minha filha, e não te preocupes comigo. Seja o que for que me aconteça neste mundo, não pode acontecer-me sem que Deus o queira. E tudo o que Ele quer, por muito mau que nos pareça, é, com toda a certeza, muito bom”.

domingo, 14 de junho de 2009

Felizes..

Uma das páginas mais conhecidas do Evangelho é, sem dúvida, a das bem-aventuranças que inaugura o célebre sermão do monte.
Todas as oito bem-aventuranças se podem considerar contidas na primeira, uma espécie de síntese de todas elas. E todas podem ser vistas como um retrato de Jesus e, por isso mesmo, o estatuto do discípulo ou seja, do cristão.
Fazer das bem-aventuranças mais uns mandamentos é desvirtuá-las, esvaziá-las do potencial explosivo nelas concentrado.
Felizes os pobres em espírito, os que o são no seu íntimo… e muitas outras traduções do original grego. Melhor: uma atitude, mas talvez ainda seja insuficiente.
Se as bem-aventuranças são o estatuto do discípulo de Jesus, então não devem ser interpretadas apenas como mandamentos nem como conselhos mas como constituindo parte essencial da opção de seguir o Mestre. Ser pobre é, no discurso de Jesus, um traço essencial da figura do Mestre e portanto também do discípulo.
Mas ser pobre como?
Ser desprendido? Sim, mas mais que isso, creio. É assumir livremente as consequências da condição de pobre. O pobre não pode aspirar a ser importante; nunca terá assento nos primeiros lugares; está no mundo para servir, não para ser servido; é o primeiro a ter que emigrar, o primeiro a sofrer com as calamidades naturais ou a violência dos poderosos…
Nada disto é um bem que se procure nem o pobre escolheu a sua condição.
Não é nenhuma felicidade estar privado do uso dos bens que o mundo oferece
(a alguns…). A felicidade verdadeira consiste em estar de tal modo livre em relação a tudo, que se procure acima de tudo o reino de Deus e a sua justiça. Foi assim que o Filho de Deus renunciou à grandeza da condição divina e optou livremente pela condição humana.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Nem bem nem mal

É sabido que uma das maneiras de os povos exprimirem a sabedoria ancestral é a das sentenças proverbiais. Fruto da experiência reflectida dos sábios, nem sempre se entendem à primeira leitura, como esta, por exemplo: “De ti nunca digas nem bem nem mal”. Também é pela experiência que a verdade profunda incluída em tais sentenças nos será, pouco a pouco, desvendada.
Falar bem de mim, das minhas qualidades, das minhas virtudes é, na realidade, obsceno.
Falar mal, tratando-se do estendal das minhas misérias, é mórbido e só pode interessar a quem se delicia a lamber as próprias feridas. Se for apenas a confissão de alguns defeitos, é pouco interessante e pode ser razoavelmente hipócrita pois é normal que provoque, por delicadeza, o ricochete de sinal contrário. Portanto nem bem nem mal, é o mais sensato.