segunda-feira, 7 de setembro de 2009

A morte

Tenho assistido a mortes turbulentas em que a natureza só se entrega depois de um combate onde lançou todos os seus recursos; outras, tão serenas que mais parecem um suave adormecer.
Seja qual for o modelo, o que me impressiona mais é a morte em si. Que mistério!
Há quem procure desdramatizar dizendo, com algum cinismo: acabou-se a corda. Mas quem aceita ser um boneco a que se deu corda para 100 anos ou para 8 dias? Por isso sempre se procuraram explicações. Uns contentam-se com a persistência do nome; outros com a reencarnação ou a fusão impessoal no universo. Até cristãos, talvez por vaga influência platónica, descansam com o regresso do corpo à terra enquanto a alma se liberta e volta para o céu (das ideias).
É evidente que, no mundo, tudo acaba por morrer; o grande equilíbrio universal inclui a morte. Os próprios animais estão ao serviço da espécie e assim, cumprida essa missão, morrem sem drama. Para o ser humano não é assim, não se aceita simplesmente desaparecer.
A meu ver não há nenhuma explicação para a morte. Mas há melhor: para quem aceita a revelação de Jesus, a morte foi tragada pela Vida. Todo aquele que se compromete pelo caminho traçado por esse Homem que é a Vida, ainda que tenha morrido viverá para sempre.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Pobres

“Ninguém entra no céu sem uma carta de recomendação dos pobres”
Desconheço o autor da sentença mas reconheço que ela é certeira e abre campo à inteligência de muitas passagens do Evangelho.
Certo é que Jesus nunca condenou a riqueza, em si, nem os ricos. Mas também é verdade que sublinhou fortemente a dificuldade, acrescida para os ricos, de alcançar o reino de Deus. “É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha”. À letra, seria impossível.
Qual será então a razão de tão grande dificuldade em conciliar riqueza e reino de Deus?
Diria que a posse de muitos bens cria uma espécie de muralha que impede o contacto com os diferentes que são os pobres. Para lá dessa muralha não se vê o que incomoda nem se ouve o grito dos infelizes.
O Senhor, pelo contrário, viu, e ouviu o grito do povo escravizado no Egipto. É um Deus próximo particularmente dos que sofrem; não há barreira que o isole, faz-se pobre e pequenino a fim de estar com os pobres e os pequeninos.
O rico criticado pelo Evangelho dificilmente ultrapassa o muro que o isola dos pobres. Poderá dar grandes esmolas mas de longe, não suja as mãos. O seu mundo é o mundo dos iguais que o adulam, lhe mentem com elogios e justificam as suas opções egoístas.
O Salmo é impiedoso: «O homem que vive na opulência e não reflecte é semelhante aos animais que se abatem».

A verdadeira grandeza

“Mais alto, mais rápido, mais longe” – é o lema dos Jogos Olímpicos. Na Grécia antiga, nos jogos olímpicos, e noutros semelhantes, o prémio era uma coroa de louros; agora as medalhas são respectivamente de ouro, de prata ou de bronze. Mas talvez o mais estímulo seja o preço em dólares do melhor nadador, do campeão da maratona, do melhor saltador, enfim do melhor atleta, ou seja quanto ganha, não só pelo feito desportivo mas pela marca que leva nas sapatilhas ou nas costas.
De modo semelhante na vida quotidiana nos propõem metas a partir das quais se classificam os indivíduos: os mais poderosos, os mais ricos, os mais aptos, os mais inteligentes, etc. sem falar do mais disparatado livro que é o Guiness. Aí se coleccionam os máximos mais incríveis: o que mais conseguiu comer ou beber, o maior bolo, o que aguentou mais tempo a dançar ou a beijar, e por aí fora.
A grande revolução foi operada pelo Pobre de Nazaré. Queriam saber os discípulos quem era o mais importante. A resposta de Jesus foi colocar no meio uma criança e proclamar: Esta é que é a maior! E quem quiser ser grande no meu Reino tem que mudar de critério pois só quem se tornar simples como esta criança poderá ser nele admitido.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Eclesiastes

É fascinante a leitura do livro chamado do Eclesiastes ou Qohélet.
Pessimista? Sem dúvida, mas é sobretudo a reflexão de um Sábio sobre a brevidade da vida e a caducidade de todos as coisas. “Apliquei-me a estudar e a explorar todas as coisas que sucedem debaixo do céu. E achei que tudo é ilusão e correr atrás do vento.”
Para o Eclesiastes, o tempo não mede a sucessão dos acontecimentos; é qualquer coisa de arbitrário, uma espécie de roleta que nos diz que tudo o que é, já foi, nada de novo debaixo do sol. É claro que a morte, nesta perspectiva, não tem qualquer sentido. Quebra-se o círculo simplesmente. O que não impede a belíssima descrição do fim:
Quando se acorda com o piar de um pássaro e emudecem as canções / Então também haverá o medo das subidas […] Antes que se quebre a bilha na fonte, / e se desenrole a roldana sobre a cisterna […] Então o pó voltará à terra donde saiu / e o espírito voltará para Deus que o concedeu ./ Ilusão das ilusões.”
Este Sábio parece ainda prisioneiro da visão dos povos que não beneficiaram da revelação do Amor que cria para o amor. Para estes o tempo é circular, tudo volta ao início, não há verdadeiro progresso nem novidade.
Para os israelitas, considerados os inventores da História, e mais ainda para os cristãos, o tempo é um vector, teve um início e terá um fim. Pode-se aprender com o passado e assim é lícito dizer que a História é mestra da vida. Mas, ao oposto das expressões do Eclesiastes, nada se repete; cada momento é um marco em ordem ao termo.
Assim sendo, cada um é responsável pelo futuro. No dizer de Teilhard de Chardin, Cristo é o ponto ómega, para onde tudo converge.

domingo, 5 de julho de 2009

Amo-te

Dizer a alguém “Amo-te” é uma aventura. A resposta pode ser não, pode ser a indiferença ou pode ser sim. Quando é sim, então começa nova aventura mas, desta vez, a dois. Aquele que tomou a iniciativa, na verdade nunca é o primeiro. Antes teve que ser misteriosamente atraído; tem que ser ele a dar o primeiro sim.
Com Deus passa-se algo semelhante mas radicalmente diferente. Ele é que é verdadeiramente o primeiro pois nada o poderia atrair.
Disse-o de muitas maneiras já no Antigo Testamento: amei-te desde o seio de tua mãe; amei-te quando me eras infiel…
Mas claramente, só o disse no Novo Testamento, pelo Filho. Antes que o mundo existisse eu te amei pois foi no amor que criei o mundo e no mundo te chamei à vida.
No princípio do princípio era o Amor. A grande aventura em que Deus se comprometeu foi colocar na existência uma criatura capaz de recusar o Amor. Posso dizer não; posso dizer sim e ser infiel…mas posso também dizer sim, apaixonar-me e dar quanto tenho e quanto sou.
Afinal é só uma restituição: tudo me foi dado, até o poder dizer sim ou não. E apesar de todos os meus nãos, Ele será sempre o Sim que não se arrepende.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

O silêncio de Deus

Quando os amigos desaparecem e a tristeza me invade, quando a nada me posso agarrar e falta o pé, quando nem Deus corre a socorrer-me, é então que a fé se transforma em grito de angústia: “Meu Deus, porque me abandonaste?” Onde estavas quando chamei por ti?
O evangelista Marcos, como é hábito, coloca a situação num caso concreto. Jesus sobe para um barco com os seus amigos e aproveita a travessia do lago para descansar. Surge então furiosa tempestade que ameaça fazer soçobrar a barca e quem nela navega. Entretanto Jesus dorme tranquilamente, à popa. Não vês que nos perdemos? perguntam aflitos os discípulos. Em lugar de responder, Jesus censura: “Ainda não tendes fé?”
Habituados a estar do lado da salvação, quando os perdidos eram os outros, ainda não sabiam que lhes cabia agora ir ao encontro de quem precisasse de ajuda. Não sabiam, ainda não tinham uma fé adulta.
E eu? Quando poderei afirmar com verdade: “Ainda que os amigos me abandonem, ainda que as ondas do mal se levantem contra mim, nada temerei porque tu estás comigo”. Podes estar a dormir, aparentemente surdo e mudo, impotente. Ainda assim, sei que estás comigo, nada temerei.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Medos

Sempre admirei aquelas pessoas que não têm medo. Pode ser por inconsciência, por insensibilidade ou simplesmente por bravata. Não são essas que eu admiro. Pois há coisas de que sensatamente devemos ter medo: enfrentar animais ferozes sem proveito para ninguém; pôr em risco a própria vida e a dos outros pelo simples prazer de experimentar a orgia da velocidade, isso é temeridade e não me causa qualquer sentimento de admiração.
Mas enfrentar serenamente perigos tremendos por fidelidade ao amor de Deus ou do semelhante, isso é verdadeira e admirável valentia.
Vem isto a propósito do santo que hoje se comemora, o homem para todos os tempos, Thomas More. Humanista, com o que isto significa de cultura universal, encantador chefe de família, íntimo do rei, Chanceler de Inglaterra senhor de todo o poder, abaixo do soberano… só lhe era pedido que assinasse a declaração de nulidade do casamento real. Tão pouca coisa uma assinatura, quase todos os conselheiros o fizeram, poderia tão facilmente encontrar uma justificação…
Mas a consciência, esse cristalino, embora secreto, juíz de todas as decisões, não podia ser ignorado. Impossível fazer a vontade ao rei.
Na belíssima carta que escreveu, da prisão onde aguardava a execução, à filha predilecta, Margarida, podemos encontrar o fundamento de tão serena fortaleza em face da morte:
“Está tranquila minha filha, e não te preocupes comigo. Seja o que for que me aconteça neste mundo, não pode acontecer-me sem que Deus o queira. E tudo o que Ele quer, por muito mau que nos pareça, é, com toda a certeza, muito bom”.

domingo, 14 de junho de 2009

Felizes..

Uma das páginas mais conhecidas do Evangelho é, sem dúvida, a das bem-aventuranças que inaugura o célebre sermão do monte.
Todas as oito bem-aventuranças se podem considerar contidas na primeira, uma espécie de síntese de todas elas. E todas podem ser vistas como um retrato de Jesus e, por isso mesmo, o estatuto do discípulo ou seja, do cristão.
Fazer das bem-aventuranças mais uns mandamentos é desvirtuá-las, esvaziá-las do potencial explosivo nelas concentrado.
Felizes os pobres em espírito, os que o são no seu íntimo… e muitas outras traduções do original grego. Melhor: uma atitude, mas talvez ainda seja insuficiente.
Se as bem-aventuranças são o estatuto do discípulo de Jesus, então não devem ser interpretadas apenas como mandamentos nem como conselhos mas como constituindo parte essencial da opção de seguir o Mestre. Ser pobre é, no discurso de Jesus, um traço essencial da figura do Mestre e portanto também do discípulo.
Mas ser pobre como?
Ser desprendido? Sim, mas mais que isso, creio. É assumir livremente as consequências da condição de pobre. O pobre não pode aspirar a ser importante; nunca terá assento nos primeiros lugares; está no mundo para servir, não para ser servido; é o primeiro a ter que emigrar, o primeiro a sofrer com as calamidades naturais ou a violência dos poderosos…
Nada disto é um bem que se procure nem o pobre escolheu a sua condição.
Não é nenhuma felicidade estar privado do uso dos bens que o mundo oferece
(a alguns…). A felicidade verdadeira consiste em estar de tal modo livre em relação a tudo, que se procure acima de tudo o reino de Deus e a sua justiça. Foi assim que o Filho de Deus renunciou à grandeza da condição divina e optou livremente pela condição humana.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Nem bem nem mal

É sabido que uma das maneiras de os povos exprimirem a sabedoria ancestral é a das sentenças proverbiais. Fruto da experiência reflectida dos sábios, nem sempre se entendem à primeira leitura, como esta, por exemplo: “De ti nunca digas nem bem nem mal”. Também é pela experiência que a verdade profunda incluída em tais sentenças nos será, pouco a pouco, desvendada.
Falar bem de mim, das minhas qualidades, das minhas virtudes é, na realidade, obsceno.
Falar mal, tratando-se do estendal das minhas misérias, é mórbido e só pode interessar a quem se delicia a lamber as próprias feridas. Se for apenas a confissão de alguns defeitos, é pouco interessante e pode ser razoavelmente hipócrita pois é normal que provoque, por delicadeza, o ricochete de sinal contrário. Portanto nem bem nem mal, é o mais sensato.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Bakhita (1869-1947)

Esta é na verdade uma santa fora do comum. Nascida no Sudão (região do Darfur), analfabeta, foi raptada e vendida cinco vezes como escrava; usada e descartada, até ser comprada pelo cônsul de Itália, para os serviços domésticos. Admirava-se que os novos patrões não usassem o chicote para lhe significar alguma ordem.
Com a repatriação do Cônsul, pediu para acompanhar a família na sua transferência para Itália.
Foi aí que conheceu um Senhor diferente por quem se apaixonou, Jesus Cristo. Depois de convenientemente instruída, recebeu o baptismo e consagrou-se ao seu Senhor no Instituto das irmãs Canossianas.
Foi canonizada por João Paulo II no ano de 2000.

terça-feira, 5 de maio de 2009

A comunidade

Não foi nem é hoje fácil realizar no concreto da vida o ideal da comunidade cristã apresentado por Lucas.
Um só coração e uma só alma, orientados pela doutrina dos apóstolos, na alegria de compartilhar tudo quanto cada um é e tem, e por consequência sem necessitados, que maravilha!
No entanto, não foi preciso muito tempo para que surgissem invejas, divisões, ricos e pobres, manifestações de poder…
Era necessário que João viesse recordar: Pastor, hoje diríamos talvez Chefe, há só um, o Senhor Jesus. E quem o quiser seguir, seja qual for a sua responsabilidade dentro da comunidade, terá que imitar o seu exemplo. Em resumo – dar a vida, seja de maneira sangrenta como Ele, seja, mais provavelmente, na rotina do dia-a-dia. Apagar-se em face das necessidades dos outros de modo que eles cresçam, ainda que o EU tenha que diminuir.
Comunidade perfeita nunca existiu, permanece um ideal. Há grupos e indivíduos que caminham nessa direcção confiados na força que Jesus lhes comunica.
Por isso foi certeiro quem disse: “Um santo é um pecador que não desiste”.

domingo, 3 de maio de 2009

Cinismo ou solidariedade?

A TV americana mostrava, um dia destes, uma enorme feira onde se vendia toda a espécie de armas, desde revólveres até armas automáticas para todos os gostos. Tudo se podia comprar sem necessidade de qualquer autorização. Isto já é tão extraordinário que penso só acontecer nos USA. Mais extraordinário porém é a explicação dada pelo feirante para o anormal aumento de compradores, quer de armas quer de munições – um verdadeiro arsenal. Em maré de crise seria de esperar maior contenção, sobretudo em relação a despesas não essenciais.
“Precisamente por causa da crise, explicava, com todo o cinismo, o vendedor. Com a crise é natural que haja mais assaltos por parte daqueles a quem falta tem o mínimo para sobreviver. E assim… as pessoas têm que se defender”… a tiro!
Reflectindo sobre tamanha inversão de valores, veio-me espontaneamente à memória o que tem acontecido com o “Banco Alimentar contra a fome”. Quanto mais aguda se torna a crise, mais vai aumentando o montante das ofertas.
Dois paradigmas que dão que pensar. No primeiro caso o EU ameaçado reage com violência até à morte eventual do necessitado; no segundo é o necessitado que é preciso ajudar mesmo que seja a custa de alguma renúncia aos próprios direitos.

domingo, 19 de abril de 2009

Alegria da fé

Teremos de concordar que as Missas são tristes; as chamadas “actividades” eclesiais, os grupos ou começam tristes ou caem, ao fim de pouco tempo, numa monotonia melancólica. Até as “festas” pascais, que deveriam ser uma explosão de alegria, não passam de rituais difíceis de entender, demasiado longos e fastidiosos. Há excepções, sem dúvida, que servem para confirmar a regra. E frequentemente são fruto de habilidades pastorais que não ultrapassam a superfície do mistério. Qual a razão?
Haverá muitas, mas talvez a razão mais profunda esteja em não se ter feito a experiência da presença viva de Jesus ressuscitado. Não se trata de “cumprir” leis, menos ainda de acrescentar mais alguns complementos litúrgico-pastorais. Não foi preciso nenhuma lei para arrancar o medo aos discípulos e lançá-los pelo mundo. Eles é que não cabiam em si de contentes nem em casa nem no torrão pátrio: não podiam calar o que tinham visto e ouvido. Isto não se consegue com habilidades, mais ou menos cantorias, mais ou menos violas. Trata-se de ver e ouvir, de fazer a experiência de se dispor cada um a deixar-se encontrar por Jesus ,que está tão vivo agora como quando se manifestou à Madalena ou a João. O amor não se pode conter - abre portas e janelas e transborda para os outros.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Sentença

Num destes mails piedosos e geralmente tontos que nos enviam, encontrei uma sentença cheia de sabedoria: "Deus deu-nos as coisas para usar e as pessoas para amar; infelizmente pode acontecer amarmos as coisas e usarmos as pessoas".

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Tempo

A coisa deve ser antiga a julgar pelos provérbios de muitas culturas. Mais que nunca neste nosso tempo que escorre a velocidades super-sónicas é de bom conselho reflectir um pouco. Apressa-te devagar, diziam os romanos. Parece contraditório mas a questão é precisamente essa. O tempo é breve, é preciso aproveitá-lo enquanto passa; por isso é preciso apanhá-lo na corrida. Mas com calma, para não o perder e nos perdermos. Anda toda agente a correr e ninguém tem tempo. Os sábios, os que sabem escolher correm mas devagar. Como? Não é possível ler tudo, ver tudo, experimentar tudo. Que fazer? Os insensatos não querem perder nada, vão a todas. Resultado: verdadeiramente não lêem nem vêem nem experimentam e recomeçam cada dia sempre mais cansados, mais inquietos, mais frustrados. Os sábios, ao contrário, estão em cada momento, saboreiam, fazem bem o que fazem, vêem bem o que vêem e sobra-lhes o tempo porque escolheram o que vale a pena ver ou fazer.

Ressuscitado

É tão grande o peso do mal no mundo que parece que nos esmaga. Só se diz mal, o mal que se faz, o mal que se é, a violência, o sem sentido, o absurdo... Tudo tão próximo pelos meios de comunicação, aqui e agora. Quase não dá para respirar. E no entanto é preciso respirar. Um cristão não tem o direito de desistir. O Ressuscitado é aquele que experimentou no corpo e na alma todo o poder do mal simbolizado nas chagas com que entrou na glória. Vencendo a morte, inaugurou os novos tempos em que a tristeza, a dor e a as lágrimas já seguem com a morte o cortejo dos derrotados. Por mais que apareça o domínio do mal, não há que temer: o monstro está ferido de morte. Compete a cada um de nós caminhar tranquilo mostrando os sinais de ressuscitado.

Oração irlandesa

“Que a estrada se levante para ir ao teu encontro.
Que o vento sopre sempre nas tuas costas.
Brilhe o sol, quente, no teu rosto;
caiam as chuvas macias nos teus campos;
e até nos encontrarmos outra vez…
Deus te guarde mansamente na palma da Sua mão.”

terça-feira, 24 de março de 2009

O coração

Nada mais misterioso que o coração. Di-lo a Escritura e assim o experimentamos cada dia.
Pessoas que levam tudo à frente como bulldozers comovem-se ao ouvir um Trio de Beethoven; outros, debaixo de um verniz de educação superficial, são por dentro mais frios que o gelo.
Mas o coração não é apenas o centro das emoções. É também lá que se decidem as opções de vida. Kant diria que é “pela razão prática” e não pela “razão pura”. Pascal, também grande filósofo, exprime-se mais existencialmente: “O coração tem razões que a razão desconhece”. E o nosso Pascoaes não lhes fica atrás dizendo poeticamente: “Só vê bem quem vê com o coração”.

terça-feira, 10 de março de 2009

Pão ou liberdade?

Acossados pela fome e pela sede, e perdidos no nada do deserto, queixavam-se os israelitas: “Mais vale servir os egípcios que morrer no deserto”.
O dito passou a provérbio de várias literaturas e compreende-se porquê. Quem não sentiu a tentação de se deixar ficar no conforto do ninho em vez de enfrentar o vento agreste da liberdade? Há adolescentes que recusam crescer e mães que gostariam que os filhos fossem sempre crianças. Melhores educadores são os pássaros que lançam fora do ninho os filhotes já capazes de voar.
Povos inteiros aceitaram variadas formas de servidão a troco de uma casa colectiva e de um miserável emprego despersonalizado – uma espécie de coelheira em que se procurava que produzissem e sobrevivessem.
Dos Romanos é mais cómodo falar por distarem longe no tempo. A maneira de manter o povo quieto na triste “paz romana” era enchê-lo de pão e de jogos no circo (“panes et circenses”). Será isto muito diferente da paz podre em que vegetamos, atulhados de novela e futebol?

sábado, 28 de fevereiro de 2009

Combate

Foi hoje a enterrar um amigo.
Enquanto medito no mistério deste combate em que o inimigo nos atinge todos os dias com suas balas infalíveis, não me sai do pensamento o antigo hino pascal: “A Morte e a Vida travaram um espantoso combate; o comandante da Vida morreu mas ao morrer tornou-se o Rei da Vida”.
Este herói passou metade da vida a bater-se corajosamente contra a morte. Para a nossa curta visão, sucumbiu; mas para o olhar penetrante da fé, que vê com o coração, foi a entrada triunfante na Vida. Mistério pascal vivido conscientemente, ano após ano, até ao esgotamento completo.
Fácil comentário para quem se julga longe da frente. E no entanto todo o cristão se alistou nesta milícia e os mais empenhados querem permanecer ombro com ombro junto do comandante, onde a luta é mais acesa. Os verdadeiros amigos encontram-se lá, prontos a dar a vida por quem a deu primeiro.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Onde estavas Tu, Senhor?

Também a mim Jesus pergunta: “Quem sou Eu para ti? E eu respondo como aprendi: Tu és o Cristo. Jesus aprova, “são palavras inspiradas, não vêm de ti”.
Fico feliz por ter acertado; mas logo começo a resmungar. E aquela criança a vasculhar no lixo para não morrer à fome… e aquela mulher esquelética com um filho morto nos braços… e aquele homem que se acha no direito de maltratar a mulher porque a comprou… Como é possível? No meio de toda esta miséria injusta onde estavas tu, Senhor?

Custa-me a ouvir, porque desta vez Jesus é duro, chama-me tentador, Satanás. É este o seu caminho, não posso querer desviá-lo: Ele fez-se carne, assumindo o que há de mais fraco na pobre natureza humana para elevá-la às alturas da divindade. É Ele que tem fome, que é desprezado, maltratado, morto até. Onde está Ele? – Onde quer que alguém tenha fome ou sede, seja desprezado, maltratado ou morto, é lá que Ele está.

Eu creio, Senhor, mas aumenta a minha minúscula fé.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

A propósito de Darwin

Há poucos dias, na SIC, o apresentador da Exposição dedicada a Darwin, na Gulbenkian, teve uma frase lapidar que cito de memória: “Uma vez que conhecemos pela ciência a origem das espécies, já não precisamos de Deus”.
Na verdade esse deus é perfeitamente dispensável. Darwin teve o grande mérito de mostrar que a vida é um todo e que, ao longo do tempo, as espécies vão dando origem a novas espécies até se atingir a vida humana. É verdade que na vida humana há alguma coisa que não depende da evolução – o espírito; e é isso que distingue o ser humano de todos os outros animais. Mas Deus está presente pelo acto criador tanto neste processo evolutivo, como na visão fixista segundo a qual Deus teria criado cada uma das espécies em particular. É assim que está escrito no Livro do Génesis (ou das origens). Mas a Bíblia não é um livro de ciência, é um livro de teologia cujo objectivo é afirmar, nos dois relatos da criação, que tudo quanto existe depende do acto criador de Deus. Utilizando naturalmente os conhecimentos e os métodos do tempo em que foi escrito.
Contrapõe-se por vezes o evolucionismo e o criacionismo. Isso pode acontecer de facto; mas também é possível não haver antagonismo, quando os defensores do “criacionismo” reconhecem a acção criadora de Deus ao longo do processo evolutivo.
Quem professa uma fé esclarecida alegra-se com todos os avanços da ciência. A sua fé não está fundada sobre o modo como as coisas acontecem: interroga-se sobre o porquê dos mesmos acontecimentos. A confusão deriva de não se distinguirem claramente os campos respectivos da fé e da ciência: quando a fé interfere nas conclusões da ciência ou quando a ciência pretende provar a futilidade da fé.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

O sofrer passa

“O sofrer passa.
Não passa o ter sofrido.”


Se me não falha a memória, a frase pertence ao grande escritor francês F. Mauriac. Seja de quem for, ela só pode ter brotado da experiência de um coração ferido.
Tudo passa na vida, passam as feridas, mas permanecem as cicatrizes.
Há cicatrizes horrendas de feridas não assumidas, a clamar vingança, a escorrer amargura.
Há, pelo contrário, cicatrizes cheias de doçura, de vidas gastas no amor e no serviço.
Ainda o conheci, embora já no declínio. Experimentou a perseguição e o exílio mas, ao mesmo tempo, nunca perdeu o optimismo nem o desejo de construir. Dele se dizia, nos últimos anos em que ia progressivamente perdendo faculdades: “Que ruína!” Houve, no entanto, quem acrescentasse: “Sim, mas que bela ruína!”
Li algures que um velho amargo é a obra-prima do diabo. Bem observado; por onde passa deixa um sulco de tristeza e azedume. Podíamos, no entanto, contrapor que um velho sereno, pacificado é um bálsamo para as nossas feridas mais teimosas.
Quando Jesus, depois de crucificado e morto, se manifestou cheio de vida aos seus amigos, quis que vissem as cicatrizes dos cravos e da lança. Cicatrizes gloriosas a proclamar a vitória da vida sobre a morte. Mais do que em qualquer outro caso, o sofrer passou mas ficou o ter sofrido.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Deus não é mudo

Deus falou-nos de muitas maneiras nos tempos antigos, pelos profetas. Neste nossos tempos que são os definitivos falou-nos pelo Filho”.

Assim começa a Carta aos Hebreus, ou seja aos cristãos oriundos do judaísmo. E falou porquê? – Porque nos ama. E para quê? – Para nos dizer quem é e o que espera de nós. Sendo o Filho a Palavra que exprime a totalidade do ser do Pai, depois dele já não há mais nada a dizer.
É o cúmulo do desejo impossível de quem ama: dizer-se completamente. Numa vida de amor todas as palavras, todos os gestos, todos os silêncios, são tentativas sempre renovadas e nunca inteiramente conseguidas, de se dizer. São tudo maneiras de exprimir a vontade de se dar.
Deus deu-Se-nos totalmente no Filho dizendo simultaneamente quem é – PAI. Consequentemente todos nós, se aceitarmos o dom que nos oferece no Filho, podemos também ser filhos com o direito de lhe chamar Pai e o dever de nos comportarmos como filhos.Esta é a nossa vocação: seja qual for a actividade que tenhamos que desenvolver ao longo da vida, é como filhos de Deus que a devemos exercer.

Árvores

Para muitos o Outono é uma estação triste. Para mim não. É verdade que a beleza das vinhas, no Douro, e das árvores sugere a agonia antes da morte do Inverno. Afinal trata-se apenas de uma pausa para recuperar novas forças e ressurgir na exuberância da Primavera.

Mesmo no Inverno a natureza não morre; entra no silêncio que é, como na música, o que dá sentido à frase. Como dizia Jesus quando lhe anunciaram a morte do amigo: “Lázaro está a dormir mas eu vou acordá-lo.” Pode dizer-se que é o mistério pascal vivido simbolicamente pela natureza. Como cantava um antiquíssimo poeta para celebrar a Páscoa “A morte e a Vida travaram uma espantosa batalha mas é o contendor derrotado que sai vencedor”.

Um certo cientismo de recém-chegados pretende negar todo o valor a este tipo de linguagem como se apenas fosse válida a expressão científica, objectiva e rigorosa. Contudo os “mitos” das grandes culturas continuam a ser os únicos guias que nos podem ajudar a penetrar no “mistério”. Mistério não é o buraco negro da ausência de conhecimento. É antes o que não cabe na nossa pequena capacidade de conhecer objectivamente.
Também os mitos integrados nas narrativas bíblicas são os que melhor servem para interpretar o sentido da vida, do mal e da morte, da felicidade e do que está para além da morte. Lá estão, no centro do Éden, a árvore da vida e a do conhecimento do bem e do mal. A vida é um dom que nos cabe aceitar e fazer crescer; a felicidade não pode encontrar-se no uso arbitrário da nossa liberdade. Só se pode descobrir na prática de uma fidelidade criativa à nossa realidade de imagens de Deus.